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De Homem Para Homem - Fernando Sabino

quinta-feira, 31 de março de 2011


Você talvez não se lembre: devia ter naquela época uns quatorze ou quinze anos. Eu tinha sete. Sei disso, porque naquele ano havia entrado para o grupo escolar. E foi no grupo que ganhei meu bodoque.
Trata-se, portanto, de um bodoque - também chamado de atiradeira ou estilingue. Nós chamávamos de bodoque: uma forquilhinha, em geral de goiabeira, raspada a canivete, da qual partiam duas tiras finas de borracha de câmara de ar de bicicleta, bem amarradas (era preciso esticar bem para amarrar, do contrário se soltavam) e juntas na outra extremidade por um pedaço de couro de língua de sapato velho. Assim eram os bodoques, e não serviam só para matar passarinho, como você insinuou, serviam para tudo: para quebrar vidraça, para derrubar manga, para tiro ao alvo, para guerrear contra os outros meninos. Deus é testemunha de que nunca consegui matar nem um passarinho com bodoque ou sem ele, era péssima a minha pontaria - esse pecado não carrego comigo, foi uma injustiça de sua parte. E honra me seja feita: o único passarinho morto que me caiu nas mãos, achado no quintal já meio comido de formigas, enterrei com todo o respeito, depois de abrir com o canivete, para ver como ele era por dentro. Isso os médicos estão cansados de fazer com gente de verdade nos hospitais, não é pecado nenhum.
Que foi que aconteceu com meu bodoque? Você não se lembra, certamente, nem chegou sequer a saber como ele veio parar nas minhas mãos. Pois lhe conto agora: eu tinha uma colação de marcas de cigarro que troquei com Evandro por uma coleção de pedras preciosas de vidro; vendi as pedras por quatrocentos réis dos grandes e com eles, e mais um pião, e mais uns selos da Tasmânia que tinha ganho numa aposta, e mais - não tenho certeza - duas ou três bolas de gude, comprei afinal o bodoque de um menino que já não lembro mais quem era. Faz diferença eu não me lembrar mais quem era?
Pois bem: e que foi que aconteceu? Aconteceu que naquele mesmo dia eu fui procurar Newton e Toninho para mostrar o meu bodoque, muito melhor do que os deles, não encontrei nem um, nem outro. E olhe que Newton sabia fazer bodoque! as forquilhas dos bodoques dele sendo tão fechadinhas que era preciso esticar muito para não pegar no dedo, a pedra passava por cima. Encontrei foi você, na porta da casa do Armando e do Quico, ali na Rua da Bahia. Eu trazia o bodoque enrolado no bolso da calça e queria fazer uma surpresa, se não para o Newton e o Toninho, pelo menos para o Quico, que não tinha bodoque nenhum ainda. Você já era meio compridão feito hoje, me lembro que me olhou de cima para baixo com esses olhos meio caídos que tem até hoje e me disse: "Aonde é que você vai aí todo satisfeito?" Eu disse que ia mostrar ao Quico o meu bodoque, você então perguntou: "Bodoque?" E me pediu para ver, com ar fingido de quem já é velho demais para ficar pensando em bodoque. Então caí na asneira de enfiar a mão no fundo do bolso da calça, tirar o bodoque e mostrar. E você, o que foi que fez? Pegou no bodoque como se quisesse mesmo ver, mas logo abriu o paletó e me mostrou a fivela do cinto, falando: "Olha aí" E guardou meu bodoque no bolso. Era uma fivela dourada de cinto de escoteiro e nela estava escrito "Sempre Alerta" debaixo de uma flor de lis. Mas era só o cinto, você não estava fardado de escoteiro, estava até de calça comprida, que você já usava. Armando, que também era mais velho, veio chegando e viu, perguntou o que era, então você explicou para ele: "Sou escoteiro, tomei o bodoque dele".
Tomou o meu bodoque. Quando eu entendi que você me tinha tomado mesmo o bodoque por ser escoteiro e escoteiro não pode matar passarinho, perdi a cabeça e comecei a gritar: "Mas eu não sou! Me dá meu bodoque!" Acabei chorando de raiva e o próprio bodoque, digo, o próprio Armando insistia com você que não fizesse isso, deixe de coisa, dá o bodoque do menino. E você ali inabalável, até achando graça na minha raiva. Acabou dizendo que primeiro iria apurar se eu costumava matar passarinho com bodoque (juro que não, era para derrubar manga!) e no caso de não apurar nada, era possível que devolvesse. Saí dali meio perplexo, já nem chorando mais, esmagado pelo peso de sua autoridade de escoteiro.
Pois muito bem: foi isso que aconteceu. Depois daquele dia tive uma porção de bodoques, fui escoteiro também, nunca me aconteceu tomar bodoque de ninguém. Os anos passaram, eu cresci, muitas coisas aconteceram, e aqui estou. Você também cresceu, embora já fosse bem crescido, muitas coisas lhe aconteceram, você aí está. De vez em quando tenho notícias suas por amigos comuns, de vez em quando cruzamos na rua um com o outro, chegamos mesmo a trocar palavras de cordialidade, somos velhos conhecidos, nada temos um contra o outro.
A não ser o bodoque. Seu candidato venceu nas eleições, você veio para o Rio, foi nomeado para um alto cargo administrativo onde, dizem os jornais, tem revelado competência. Fico muito satisfeito com isso, você levando a sua vida e eu a minha, está tudo muito bem.
A não ser o bodoque. Seu nome, para mim, antes de mais nada, continua ligado ao bodoque que você me tomou e nunca mais me devolveu. Só porque era escoteiro. Ora, tenha paciência! Hoje não sou menino mais, você pode ser mais alto e mais velho do que eu, pode ser muito importante, diretor, ministro, ou lá o que seja, até presidente da República, não me espantaria, do jeito que as coisas vão - mas eu sou homem também. E se você quer que eu te considere um homem, antes de mais nada me devolve meu bodoque.
Eu quero meu bodoque.

SABINO, Fernando. As Melhores Crônicas de Fernando Sabino. 4ª ed. - Rio de Janeiro/RJ: Record, 1992. pp 50-53